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a pracinha
PSV 2023 A certa altura do caminho, M. percebeu que os amigos haviam escasseado, e que os bons eram raros; que o mundo é um lugar esquivo e estranho; que a vida, um percurso duvidoso; que a alma vaga e hesita, por sua própria natureza. Decidiu então encontrar um recanto onde pudesse estar consigo. Junto ao muro coberto de hera, pontilhado por orquídeas e ladeado de avencas e arbustos, sob uma árvore de frutos vermelhos, ajeitou uma pequena mesa e três cadeiras. Dali podia ver o pôr-do-sol, a mansa chegada do crepúsculo, o céu intenso, alguma vez o luar silencioso. Ás vezes recebia a visita mansa de um…
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o abacateiro
Foto PSV 2022 Este ano o abacateiro não deu fruto. Na época certa, floresceu dourado, anunciando imensa produção. Há muitos anos ele age assim, em generosidade sem limite. O que nos dá o gosto de ingerir o fruto e o distribuir aos amigos – e até a desconhecidos. Mas este ano o abacateiro não frutesceu. Resultaram umas pequenas bolas verdes e duras, que caem com o vento, em melancólica desesperança. Recusaram-se todos ao intumescimento da devida estação. Perguntei ao abacateiro o motivo. Soberbo, ele não me deu resposta. Tenho pensado longamente. De repente, atinei com a explicação. Por décadas tenho colhido os frutos desta árvore majestosa. Admiro-a profundamente, mas…
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o arauto
“ É o sentido que os homens conferem à sua existência, é seu sistema global de valores que define o sentido e o valor da velhice. Inversamente: através da maneira pela qual uma sociedade se comporta com seus velhos, ela desvela sem equívoco a verdade – muitas vezes cuidadosamente mascarada – de seus princípios e de seus fins.” (Simone de Beauvoir, “A Velhice”, 1970) Devemos todos refletir sobre a velhice, arauto de nossa finitude. É preciso coragem e serenidade para olhá-la de frente e tentar decifrar seu sentido. A maioria de nós desvia os olhos, perturbado. O velho a toca com sua mão trêmula. Estará em confronto com…
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retrato
Fizeram-me um retrato. Para minha surpresa, recebi de Helga Plötner, artista alemã, veterana Esperantista e linda pessoa, o meu retrato. Ela se dedica, generosamente, a criar retratos de Esperantistas, mundo a fora. Desenha-os com artes de minúcia, delicadeza e precisão. Resultam rostos cheios de vida. Olho-o longamente, e me custa distinguir o que sinto. Examino a pele engelhada, especialmente ao lado dos olhos assimétricos – o esquerdo mais fechado. Abaixo da cabeleira branca, a testa é larga e sulcada, e as orelhas, pequenas. Em contraste com o nariz volumoso, que minha mãe denominava “nariz fornalha”, quase uma deformidade. Sulcos profundos também nos lados da boca, cujos lábios sorriem de…
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uma visita
PSV - jan 2023 Recebi uma visita da Sra. Cegueira. Mulher esguia, séria e de poucas palavras. Entrou, sentou-se na beira de uma poltrona da minha sala, girou os olhos pelo ambiente e indagou sem preâmbulos: - Quê tens olhado? - Olho o mundo, os homens e alguns bichos. - Quê tens visto? - Alguma dor, alguma alegria. - Quê pretendes? - Olhar ainda um pouco mais, e ver melhor. Ela esboçou um sorriso mínimo, que podia ser de ironia ou de comiseração. - Não mereces. Podias ter olhado melhor, visto melhor. Mau uso tens feito dos olhos que te dei; merecias perdê-los. Mas, para teu consolo, encontrei hoje muitos…
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renascimento
Baldur Ragnarsson (1930-2018), autor islandês de extensa obra literária original em Esperanto. renaskiĝo renascimento Kiel ombro de ombro Como a sombra de uma sombra mildas la sonĝo en niaj koroj suave é o sonho em nossos corações kiel odoro de nevidebla floro como aroma de flor invisível kiel lunolumo sur fermitaj okuloj. como a luz da lua sobre olhos cerrados Kaj ni ne plu estas la samaj. E já não somos os mesmos. Ni sonĝis nin for Sonhamo-nos longe detruis nian materion desfizemos nossa matéria nuligis niajn distingojn de noblo kaj malnoblo anulamos nossas percepções de kulpo kaj senkulpo nobreza e mesquinhez scio kaj nescio culpa…
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mensagem da mão sinistra
A Sala São Paulo apresentou recentemente o Concerto para mão esquerda, de Maurice Ravel (1875-1937), executado pela OSESP e pelo solista Cédric Tiberghien. Todo mundo devia ver e ouvir, e depois procurar outras performances no Youtube. Trata-se de uma experiência estética única – além de uma mensagem de vida. Dezoito minutos de música fascinante, composta a pedido do pianista austríaco Paul Wittgenstein (1887-1961), que perdera o braço direito na guerra. A dança vertiginosa da mão sinistra não monta apenas três sequências rítmicas em contínuo de extraordinária exigência técnica, mas parece também dizer ao ouvinte expectador: “Não se queixe; enfrente!”. MESAĜO DE LA MALDEKSTRA MANO La brazila koncertejo…
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milênios depois…
Mercêdes Fabiana, grande e culta amiga, me brinda com um volume pequeno e precioso “Da Ilíada”, de Rachel Bespaloff, Editora Âyiné, 2022, tradução (primorosa) de Giovani T. Kurz. Em 6 capítulos e um adendo, a autora traça refinada análise do poema de Homero, que, escrito séculos antes de Cristo, repercutiu nas ideias cristãs, segundo ela. Curiosamente, justapõe ao poderoso poema à obra de Lev Tolstoi. As divindades helênicas, segundo a autora, refletem a incoerência e a insanidade humanas, “perfeitos personagens de comédia”. Assim também os mundanos de “Guerra e Paz”. Para as minhas necessidades (talvez inconscientes), o segundo capítulo, “Tétis e Achiles” é o ápice do livro. Descreve o…
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luto
PSV set 2022 Luto manto tênue do tear de uma tecelã muito velha. Couraça rija, vago odor de chuva fina silenciosa litania indecifrável. Tomo-o nas mãos trêmulas e o amasso, e fica-me na pele a tinta vil do pardo papel. O luto não se amarfanha, não se rasga, não se queima. O luto se sopra, de mistura com um assobio infantil. Sai no hálito. A cor do luto não cabe no negro, mas no ocre. Paira, nunca pousa. Erra vago informe. funebro Funebro leĝera mantelo el la teksilo de tre maljuna teksistino. Malmola kiraso malpreciza odoro de pluveto silenta litanio nedeĉifrebla. Mi prenas ĝin per tremantaj…
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a inquisição e o queijo
Minha amiga Lourdes Camelo me presenteou com um livro curiosíssimo, publicado pela primeira vez em 1976 : “O queijo e os vermes”, de André Ginzburg (Companhia de Bolso, 13ª reimpressão). O tema é a exaustiva pesquisa sobre o processo inquisitorial do herege Menocchio, moleiro de Friuli, na Itália do século 16. A mim sempre pareceu misteriosa a Santa Inquisição. Nunca compreendi bem o fundamento histórico e doutrinário da Igreja durante aquele sombrio período. Este livro me clareou um pouco a ignorância. Não havia doutrina, havia puro e simples obscurantismo. Importava apenas perseguir e punir, com base em teologia impenetrável. E o mais curioso: também os hereges flutuavam em delírios…