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    a inquisição e o queijo

      Minha amiga Lourdes Camelo me presenteou com um livro curiosíssimo, publicado pela primeira vez em 1976 : “O queijo e os vermes”, de André Ginzburg (Companhia de Bolso, 13ª reimpressão). O tema é a exaustiva pesquisa sobre o processo inquisitorial do herege Menocchio, moleiro de Friuli, na Itália do século 16. A mim sempre pareceu misteriosa a Santa Inquisição. Nunca compreendi bem o fundamento histórico e doutrinário da Igreja durante aquele sombrio período. Este livro me clareou um pouco a ignorância. Não havia doutrina, havia puro e simples obscurantismo. Importava apenas perseguir e punir, com base em teologia impenetrável. E o mais curioso: também os hereges flutuavam em delírios…

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    sabedoria

       PSV - jul 2022    Floriu de novo o velho abacateiro. Há décadas, a cada inverno, ele se veste de dourado sob o céu azul e seco de julho. Milhares de florezinhas amarelas formam uma grande coroa de ouro sobre a folhagem espessa. Espetáculo silencioso e exuberante, que antecede a longa e generosa entrega dos frutos amanteigados. Com seu tronco espesso e enrugado, o velho abacateiro nada exige. Não espera sequer o nosso olhar de admiração e enlevo. Apenas floriu, mais um ano; apenas frutificará com abundância, mais uma estação.  Pontual e exato. Sereno e altaneiro. Imperturbável. A cada floração, acode-me pensar em quem o plantou. Alguém que o regou e…

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    cidades mortas renascem

       PSV jul 2022  Elas já foram chamadas “cidades mortas”. Silveiras, Areias, São José do Barreiro, Bananal e outras conheceram o fausto e o poder, no final do império;  o ostracismo e a decadência, nas décadas seguintes. Com a mudança das rotas e do jogo econômico, ficaram esquecidas, no “fundo do Vale do Paraíba”. A melancolia tomou conta daquele belo pedaço de Brasil, cheio de história. Monteiro Lobato morou e trabalhou naquela região, no início do século 20, e descreveu com força trágica as cidades mortas. Enganou-se. Não estavam mortas, estavam adormecidas. Um século depois, estão a renascer, agora revitalizadas por nova riqueza – a de sua cultura e de um…

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    mar inatingível

      PSV jun 2022   Minha casa não fica ao pé do mar. Da janela diviso a poderosa montanha, a névoa, os pássaros ruidosos, o tímido cão,  e estremeço pela ausência do fluido mar. No entanto, o que está longe me sustenta. O desejo remoto, a veleidade insustentável, o verso nunca traçado, o pensamento exilado, o som  subterrâneo. A nostalgia do mar inatingível. O essencial não fica ao pé de mim. Também se vive do que não se tem.     Neatingebla maro   Mia hejmo ne staras apud la maro. Tra la fenestro mi vidas la potencan montaron, nebulon, bruemajn birdojn, timeman hundon, kaj mi ektremas pro foresto de la fluida…

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    o trato

       PSV - jun 2022      A guerra entre Rússia e Ucrânia não é assim uma coisa totalmente insensata. Vê-se em meio à selvageria algum sistema, uma certa organização. Há por exemplo a “regra dos 50 por 50”. Os russos entregam 50 corpos de soldados ucranianos em troca de outros 50 russos. Parece justo.  Compõe-se uma lista cuidadosa, que cada lado pode conferir, para que o trato funcione com confiabilidade. Tudo bem documentado, para que não haja fraude. Finda a troca, prosseguem as bombas, para que se produzam mais corpos, sem os quais não pode haver trato.     Quanto aos vivos, terão sua vez de serem promovidos a mortos.     Quanto…

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    o que é que houve no céu?

       PSV - maio 2022      — O que é que houve no céu?     por que no céu tanta luz?     — Se você não percebeu,     não é o Sol que a produz,       ela vem de peito alado     que um outro peito aninhou,     e do carinho somado     muita luz reverberou...         — Kio nova en ĉielo?     kial en ĝi tia brilo?     — Atentu, ke tia belo     ne de Suno estas filo,       sed de brusto de birdeto,     kiu parulon ekamis     kaj per silenta dueto     la firmamenton ornamis...

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    catarata

       PSV jun 2022   Velha, miúda e encanecida. De uns anos para cá, também os olhos encaneceram, e uma névoa pálida foi tomando conta das coisas. Tornou-se o mundo um grande véu leitoso, onde só havia sons. Já não podia andar, já não sabia procurar comida e água, não via rostos, não via paisagens.  O jeito foi refugiar-se no passado, nas antigas imagens de alegria e de pranto, de gozo e de decepção, de prazer e de dor. Esquecidos desejos voltaram, impossíveis e fantasiosos; voltava à infância pobre, à ingênua,  modesta mocidade. Passado e presente se mesclavam atrás da branca nuvem nos olhos.   Afinal, chegou o dia da graça. Quando…

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    o eclipse

      PSV - maio 2022    A certa hora  da quieta madrugada, soaram-me batidas à janela, e um sussurro: - Não vem me ver? Era Selene, de voz e luz leitosa, a derramar-se pelo quintal. Fui ver. Cada folha reverberando  alvura no ar fresco de outono. Sonolentos, vieram comigo os cães, seus notórios amigos. - Você está bonita! - Gostou do meu brinco novo? De fato, havia uma sombra de lado, no rosto redondo da moça. Uma sombra curva, a desenhar nela um acréscimo de mistério. De vez em quando, passava uma pequena nuvem, depois Selene ressurgia feliz, exibida e graciosa. - Já se vai? - Vou, minha cara. Amanhã nos revemos,…

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    A disciplina do amor

        Leio, a conta-gotas, o delicioso “A disciplina do amor”, da recém-falecida Lygia Fagundes Telles. Sempre gostei da literatura de diário, mas esta tem um sabor a mais: uma espécie de diário não datado, a misturar relatos da vida real e da vida de imaginação. Escrito com leveza e despojamento, sem perda de elegância e fluência. Textos enxutos, geralmente curtos e certeiros. Dizem um pouco, deixam outro tanto para a imaginação do leitor. A nobre função da verdadeira literatura – fazer pensar. Um primor, este registro despretensioso do quotidiano, em que a mente afiada do escritor olha o mundo divertida, às vezes assustada, outras vezes intrigada, e nos entrega instantâneos…